A polarização política é um termo que entrou no vocabulário das pessoas, nas rodas de discussão, e mais recentemente como um fator a ser levado em conta na estratégia de comunicação das marcas e de como as empresas se posicionam no mercado. Mas, afinal, o que é esse fenômeno social, e como ele afeta o ambiente de negócios? Existe maneira segura de marcas se posicionarem em um ambiente de polarização política?
O que é Polarização Política
Polarização política é um processo em que as opiniões das pessoas se dividem em extremos opostos, tendendo a se alinhar fortemente com tudo o que entendem ser o “seu lado” e rejeitando automaticamente o que consideram “o outro lado”, tornando acordos, consensos e entendimentos mais difíceis. Nesse artigo, falaremos sobre como esse fenômeno coloca desafios para estratégias de marketing e comunicação das marcas com o seu público, criando um “oceano” que muitas vezes se torna agitado, tempestuoso e difícil de navegar.
Diversidade de opiniões x polarização política
A diversidade de opiniões e o direito das pessoas as expressarem livremente, inclusive discordando umas das outras, é uma característica das sociedades abertas e democráticas. A situação de polarização política difere da simples diversidade de opiniões quando a questão política se sobrepõe a todas as outras, se tornando a lente sob a qual tudo será analisado, mesmo não havendo uma ligação direta.
Tudo é política? Ou tudo é politizável?
É verdade que muitas vezes uma questão política está inserida em outras questões. Mas não há problema algum quando isso ocorre de uma maneira orgânica, natural. Por outro lado, quando essa inserção ocorre propositalmente, ganhando um peso desproporcional dentro de outras questões, reforça no público a percepção de que tudo é política, devendo ser analisado como tal. Para quem tende a analisar qualquer assunto sob um prisma político, tudo é politizável, criando um mecanismo que se auto alimenta.
Assim, a posição política se torna a régua que mede todas as coisas, que passam a ser analisadas mais por estarem, real ou supostamente, ligadas a uma posição A ou B do que por outros méritos. Outros pontos, que inclusive podem ser a essência da proposta de valor de uma marca, acabam ficando em segundo plano.
Como o gatilho da associação pode jogar marcas na tempestade
É raríssimo vermos grandes marcas assumindo posicionamentos partidários explícitos. Mas é relativamente comum elas adotarem estratégias de marketing apoiando questões culturais ou comportamentais que são, por sua vez, associadas a posições políticas, e serem percebidas pelo consumidor que entende tudo como “politizável”, como associadas ao espectro A ou B.
É quase impossível alguém ser contra ações de marketing de causa como o McDia Feliz, do McDonald`s, que levanta fundos e chama a atenção para a causa do tratamento de crianças com câncer. Mas há causas que estão longe de ser unanimidades, carregando seu potencial para polêmicas, e se associar a elas traz o seu risco, porque inevitavelmente atrairá a simpatia de algumas pessoas e a antipatia de outras.
Uma característica do ambiente de polarização política, que deve ser levado em consideração, é que mesmo que a intenção da marca seja apenas se conectar com as pessoas que têm simpatia pela questão, não antagonizar as que não tem, é praticamente impossível receber o bônus sem lidar com o ônus.
O desafio do marketing no ambiente de polarização política
No ambiente de polarização política o desafio do marketing é entender quem são os seus consumidores e o que eles esperam das marcas, para analisar os riscos e oportunidades de estratégias que as apresentem ao público sob as lentes da polarização política. E entender quais mecanismos influenciam o julgamento racional e os sentimentos dos consumidores por marcas e produtos.
Riscos e Oportunidades
Oportunidades – participar de um assunto sobre o qual as pessoas querem conversar.
Existem oportunidades? Várias. Além de se posicionarem e criarem uma identidade forte com o público que compartilha os valores relativos a essas causas, as marcas aumentam o engajamento e geram buzz, com o assunto sendo discutido nas redes sociais, rodas de conversa e até sendo tema de reportagens e artigos assinados na imprensa.
Existe ainda a oportunidade de lançar balões de ensaio, para testar os limites de seu público.
Se uma marca detectou o risco de ficar ultrapassada, e pretende se reposicionar, é importante entender quais mudanças seu público aceitaria. Se associar a causas que possam ser relacionadas ao posicionamento que a marca busca é uma maneira de testar a reação do público antes de dar o passo definitivo, porque mais caro que o rebranding é o rebranding errado, que a marca precisa recuar para evitar um prejuízo maior.
Aumentar a visibilidade da marca no meio de um mar de informação
Todos os dias somos expostos a aproximadamente 6 mil marcas, muitas delas, nas redes sociais. Mas se ao fim do dia você tentar fazer uma lista das marcas de que se lembra, serão poucas, porque a nossa capacidade de memorizar é limitada.
Então, nesse mar de informações, é preciso se destacar de alguma maneira. Provocar uma reação emocional para chamar a atenção das pessoas, gerar engajamento e buzz, para que elas se lembrem da marca, parece uma ação inteligente, certo? Mas essa oportunidade também traz os seus riscos. Para algumas marcas, uma verdadeira armadilha.
Riscos – a armadilha do engajamento fácil.
A sabedoria popular ensina que não se discute política, religião e futebol. Esse lugar comum na língua portuguesa surgiu porque a experiência mostrou que esses são assuntos ligados a convicções profundamente arraigadas. Quando eles são questionados, o primeiro impulso que as pessoas têm é o de defender as posições que acham “certas” e atacar as que acham “erradas”. Essa disposição em defender e atacar é muito mais emocional do que racional, e tem imenso potencial de tirar a pessoa de um estado de inação e fazê-la participar da discussão de alguma maneira. Ou seja, ele provoca o engajamento muito facilmente.
Certos assuntos, quando aparecem no seu feed de rede social, não geram um impulso quase irresistível para reagir e participar do debate? Para algumas pessoas, pode ser a discussão sobre o melhor jogador de futebol. Para outras, sobre o melhor piloto de Fórmula 1, ou o mais injustiçado. Ou ainda, sobre o artista mais relevante de um determinado gênero musical.
Mas entre os vários temas, a política parece ter o alcance mais universal, sendo o assunto sobre o qual todos têm uma opinião. Esse engajamento é medido por meio do número e tempo de visualização de uma postagem, curtidas, comentários e compartilhamentos. E o efeito de tornar a marca mais visível, e lembrada, é ainda maior se o assunto ultrapassar as redes sociais, atingindo as rodas de conversa e os temas de reportagens e artigos assinados na imprensa, ou seja, se gerar o buzz.
A armadilha colocada nesse atalho para o engajamento fácil é a empresa se focar nessas métricas e não se atentar ao que realmente importa: Ter clientes satisfeitos, ser bem avaliada pelo público e sucesso nas vendas. Sem isso, são simples métricas de vaidade, indiferentes para o sucesso da empresa. E pode piorar se ainda incorrer no erro de alienar uma grande parcela do seu público, que desenvolve sentimentos negativos sobre a marca, refletidos em comentários também negativos, cancelamentos e boicotes, que afetam as vendas.
Uma frase atribuída John F. Kennedy, ex-presidente dos Estados Unidos, afirmava: “A fórmula do sucesso não existe, mas a do fracasso é tentar agradar a todos.!” A frase transparece convicção de propósitos para ser um político de sucesso, e até entrar para História, como Kennedy entrou. Mas os negócios não são a política, e vice-versa. Um político que tem, hipoteticamente, a simpatia de 60% dos eleitores vence as eleições e governa com relativa tranquilidade, bastando ser um líder e um negociador hábil, para lidar com a antipatia de 40% dos eleitores. Já uma marca que agiu para desagradar 40% dos seus consumidores tem um grande problema de imagem para contornar.
Redes sociais, grupos de WhatsApp e a comunicação direcionada
As redes sociais e o WhatsApp trouxeram um ganho enorme para empresas e marcas em relação à sua comunicação com o público. Elas permitem que as marcas tenham uma comunicação individualizada e direcionada com seus consumidores, a um custo muito mais baixo, e com um grau de exatidão muito maior. Antes das redes sociais, marcas se conectavam aos consumidores através de mídia de massa ou segmentada.
Com o surgimento da Internet, surgiu também a possibilidade do e-mail marketing, e depois o SEO, que permite que as marcas sejam encontradas pelas pessoas quando elas buscam soluções para as suas necessidades. Já os algoritmos das redes sociais identificam nossos gostos e preferências por meio do conteúdo que gera em nós engajamento. Todas são ferramentas valiosas para empresas que querem interagir com os seus clientes, para marcas que querem ser lembradas e amadas pelo público.
Mas existe um outro ponto que deve ser levado em consideração: Os usuários de redes sociais não são somente um público-alvo receptor de informação. Todos são, potencialmente, retransmissores e produtores de conteúdo, com o seu próprio público de seguidores.
A jornada do consumidor descontente
Vamos mapear a jornada de um consumidor descontente com uma marca. Se você fosse um cliente irritado nos anos 80, seu canal para protestar contra uma marca seria uma carta para a própria empresa ou para jornais impressos, radiofônicos ou televisivos.
Levava tempo, tinha algum custo e dava trabalho, porque você tinha de escrever a carta e enviá-la pelo correio. E tanto na empresa, como no veículo jornalístico, havia outra pessoa, que seguia os seus próprios critérios para decidir se a sua carta merecia ser respondida pela empresa ou publicada em um jornal, sendo que nesse caso o veículo jornalístico provavelmente contataria a empresa e ofereceria um direito de resposta.
Todas essas situações desestimulariam você de levar sua reclamação à frente, e proporcionariam o tempo para que a sua irritação diminuísse. As poucas pessoas com quem você comentaria seu desagrado com a marca seriam as do seu convívio pessoal.
Nos anos 90 a carta foi substituída pelo e-mail. Não havia mais custos financeiros e a complicação operacional diminuiu consideravelmente. Bastava se sentar na frente do computador e redigir um e-mail, onde você poderia externar toda a sua indignação. Entretanto, a repercussão daquela mensagem ainda dependia dos critérios de uma pessoa do outro lado, fosse a própria empresa, fosse um site jornalístico.
Com as redes sociais, e os grupos de WhatsApp, qualquer pessoa com um celular pode ser um produtor ou um retransmissor de conteúdo, com o seu próprio público, formado por outros produtores e retransmissores de conteúdo, que podem viralizar uma mensagem carregada com toda a irritação que não teve tempo de se dissipar. E atingir centenas, milhares ou até milhões de pessoas em questão de poucos minutos, a custo zero.
Penso, logo existo. Sinto, logo posto e compartilho
René Descartes (1596 – 1650) disse Penso, logo existo. Se vivesse hoje, talvez dissesse algo como “Sinto, logo posto, comento e compartilho”.
O ser humano é um animal racional, mas emoções e sentimentos, como raiva e a frustração interferem constantemente no raciocínio. E em um contexto de polarização política , debates nas redes sociais podem facilmente fazer as pessoas se exaltarem, serem dominadas por eles e agirem por impulso, sem pensar. Muitas vezes, com agressividade.
A fórmula para não cometermos erros nessa situação é parar e refletir antes de tomar qualquer atitude. Mas isso exige de nós alguns minutos, enquanto as reações nas redes sociais acontecem em segundos. A velocidade das redes sociais nos tirou esse tempo de reflexão, fazendo com que qualquer reação seja mais exaltada do que seria no “mundo real”.
Então, quando uma marca assume um posicionamento que pode ser relacionado às disputas da polarização política, mesmo que a reação negativa de uma parcela do público já esteja precificada, deve-se levar em conta que ela pode ser em um tom muito mais alto do que se poderia esperar.
Como as bolhas das redes sociais influem no comportamento das pessoas em relação às marcas.
Os algoritmos das redes sociais nos mostram conteúdo que sabem que são do nosso interesse, baseadas ao tipo de conteúdo que nos fez reagir anteriormente. Ou seja, recebemos mais daquilo que nos agrada. Por isso os estudiosos afirmam que eles confirmam e reforçam nossas crenças pré-existentes.
Mas eles fazem mais do que isso. Eles permitem que pessoas que dificilmente se encontrariam no mesmo tempo e lugar no “mundo real” formem comunidades com base em um ponto que tenham em comum, do colégio ou faculdade que estudaram, ao time de futebol que torcem, até suas posições políticas. Elas se reúnem em grupos de WhatsApp e de redes sociais, independentemente de, por exemplo, uma localização geográfica que permita que se reúnam presencialmente.
Acabam se formando bolhas sociais, que é como chamamos a tendência de as pessoas se fecharem em grupos com opiniões e interesses semelhantes, que são um ambiente com menos diversidade de opiniões e mais pressão social sobre posicionamentos divergentes. Dentro da bolha, ao mesmo tempo que pessoas com opiniões diferentes são muito mais cuidadosas ao se posicionarem publicamente, com receio do julgamento do grupo, elas também são estimuladas a demonstrarem publicamente posicionamentos que acreditam que serão aprovados pela maioria, porque isso melhora o seu status social no grupo.
Uma pessoa que não sai da bolha pode ser afetada pelo efeito de câmara de eco, e começar a acreditar que as ideias predominantes naquele grupo predominam também em toda a sociedade, o que não necessariamente é verdadeiro.
Vegetarianos radicais x churrasqueiros irredutíveis
Apelando para uma situação hipotética, e levemente humorística, imagine um consumidor vegetariano convicto e outro para quem o churrasco todos os fins de semana é um ritual quase sagrado. Essas duas personas podem concordar em diversos outros assuntos e até serem amigos. Mas na questão alimentação, estão em lados diametralmente opostos, não existe acordo. E ambos terão seus respetivos grupos no WhatsApp e redes sociais de vegetarianos e churrasqueiros.
Sem um ambiente de polarização política, essa divergência não seria problema. Com ela, passa a ser a régua que mede todas as coisas, inclusive com uma pressão dos grupos sobre a adequação de um relacionamento de amizade com quem está “do outro lado”. Afinal, se os vegetarianos acham que os churrasqueiros deveriam parar de comer carne, e os churrasqueiros acreditam que os vegetarianos devem renunciar às suas convicções, e apreciarem uma boa picanha, as posições de ambos os grupos são inconciliáveis dificultando uma convivência, pelo menos à mesa.
Um dia, uma marca resolveu se conectar aos dois grupos…
Vamos supor que um executivo de uma marca entenda que churrasqueiros e vegetarianos são públicos comercialmente interessantes, e decida fazer campanhas específicas, direcionadas a cada um dos grupos, se associando às causas que eles defendem, mesmo que não tenha apreço especial por nenhuma delas. Em uma era pré-redes sociais, essas campanhas seriam veiculadas em sites ou revistas segmentadas, e o conteúdo criado para agradar um grupo dificilmente chegaria ao outro.
Se por engano um ou outro indivíduo de um grupo recebesse a publicidade da marca que gosta em uma mídia destinada ao outro grupo, poderia ficar irritado e decepcionado com o que consideraria incoerência e hipocrisia. Como uma marca poderia apoiar simultaneamente duas causas com objetivos mutuamente excludentes?
Mas dificilmente se daria ao trabalho de enviar cartas ou e-mails de protesto. Muito menos de adquirir vários exemplares de mídias impressas, ou mandar por e-mail links ou prints de sites para outras pessoas de seu grupo, que poderiam ter os mesmos sentimentos de se sentirem traídas pela marca, exigindo uma retratação ou estimulando um boicote contra ela.
Mas isso foi no passado. Hoje a informação circula de maneira muito mais rápida e fácil. Com o mesmo tempo, e muito menos esforço que antes esse consumidor irritado despenderia para falar com algumas dezenas de pessoas, ou menos, hoje ele atinge centenas, milhares, até milhões. A informação viraliza de uma maneira muito rápida, com potencial para afetar a imagem de pessoas e empresas.
O ambiente dos grupos de WhatsApp e redes sociais inseridos na polarização política é uma espécie de “assembleia partidária permanente”. Uma pessoa convocar um boicote a uma marca ou o cancelamento de uma pessoa não é somente fácil e rápido. É uma maneira de mostrar o alinhamento aos valores do grupo. Assim como para outras pessoas, concordar com a ideia do boicote e sugerir outras ações, ainda mais radicais, é uma maneira de também demonstrarem esse comprometimento.
Uma voz dissonante, que pedisse calma e moderação, provavelmente seria escorraçada no grupo dos churrasqueiros e dos vegetarianos. E a marca que a princípio gostaria de se conectar com os dois grupos, separadamente, acabou conquistando antipatias e acusações de “washing”. Ou seja de um posicionamento hipócrita para tentar enganar as pessoas, de ambos os lados.
Existe posicionamento sem risco?
Todo posicionamento traz seu risco. Quanto mais engajador, maior o risco.
Isso não significa que as marcas nunca devam se posicionar. Mas antes de fazer isso elas devem analisar quem é o seu público consumidor e quais são os seus valores, se mantendo alinhada a eles. O maior perigo para uma marca é se ela parecer oportunista ou incoerente, porque esse é um traço de personalidade associado a oportunismo e hipocrisia. Por outro lado, a coerência está associada à força pessoal e intelectual, sendo a base da lógica, racionalidade, estabilidade e honestidade. Uma análise que vale para pessoas, empresas e marcas.
Estar alinhada aos valores de seu público e ser coerente não torna a marca imune às críticas. Mas se elas aconteceram, é provável que os próprios consumidores a defendam. Mesmo quem não concordar com alguns dos posicionamentos assumidos, respeitará a coerência deles.
Falem mal, mas falem de mim?
“Falem mal, mas falem de mim” era uma estratégia arriscada, mas eficiente, enquanto em um primeiro momento era possível chamar a atenção das pessoas, mesmo as irritando, e em um segundo momento contar que a grande maioria delas se esqueceria da razão da irritação, mas a familiaridade com a marca permaneceria.
Se as pessoas têm memória curta, a memória da internet é infinita. Notícias e postagens antigas sempre podem ser procuradas e resgatadas, fazendo sentimentos negativos serem despertados e as incoerências serem apontadas.
Conclusão:
Se a marca conseguiu identificar que a grande maioria do seu público se alinharia com um determinado posicionamento, ela não teria maiores problemas em assumi-lo. Isso, inclusive, aumentaria a conexão entre marcas e consumidores.
Mas, se ela identificou que sua base de público seria majoritariamente contrária, ou ficaria dividida pelo posicionamento, o ideal é que tenha muita cautela com a busca pelo engajamento fácil e a atenção a qualquer preço, porque o preço pode ser muito alto.