O design das motocicletas Harley-Davidson é um ícone dos Estados Unidos, reconhecido no mundo inteiro. Os chassis grandes e pesados, com motores e detalhes metálicos expostos, o tanque de combustível em forma de gota e o som do motor V-Twin criam uma experiência que vários competidores tentam imitar, mas sem sucesso. Entenda por que a história da Harley-Davidson construiu uma marca que nenhum concorrente conseguiu igualar.
A história da Harley-Davidson
A primeira motocicleta com motor de combustão interna foi inventada pelos engenheiros alemães Gottlieb Daimler e Wilhelm Maybach, que, em 1885, instalaram um motor a gasolina monocilíndrico, leve e rápido, em uma bicicleta de madeira adaptada, criando a Daimler Reitwagen (“vagão de montar”, em alemão).
Dezoito anos depois, em 1903, em Milwaukee, no estado de Wisconsin, nos Estados Unidos, William S. Harley e os irmãos Arthur e Walter Davidson construíram sua primeira motocicleta — na verdade, uma bicicleta motorizada, criada para facilitar o transporte em uma época em que o automóvel ainda disputava mercado com outras formas de transporte, como as bicicletas tradicionais e os veículos de tração animal. O motor tinha apenas 116 cm³, mas já mostrava o espírito de inovação tecnológica da marca naqueles tempos. No ano seguinte, foi criada uma versão mais potente, que logo começou a chamar a atenção dos curiosos.
Motos de corrida Harley-Davidson
Em 1907, foi oficialmente criada a Harley-Davidson Motor Company, que logo passou a contar com uma fábrica de verdade e uma equipe de funcionários. Nesse mesmo período, a Harley começou a participar de competições de motocicletas, consolidando sua reputação de desempenho e resistência.
Em 1910, as Harley-Davidson tiveram um desempenho notável em provas de subida de colina (hillclimbing) e em eventos de resistência (endurance), conquistando múltiplas vitórias e estabelecendo uma reputação de confiabilidade. Nas board track racing, corridas de velocidade disputadas em “motódromos” ovais de tábuas de madeira, as Harley-Davidson Model 6E, despojadas e focadas em velocidade, se destacavam.
O posicionamento de marca da Harley-Davidson naquela época — diferentemente de hoje, mais de 100 anos depois — era baseado na performance, sem deixar de lado a praticidade e a confiabilidade. Após o evento de endurance em 1910, um anúncio de página inteira veiculado nos jornais afirmava: “É a estrada, não a pista de corrida, que realmente testa uma máquina”, destacando a durabilidade de seus produtos
Wrecking Crew – A equipe de demolição da Harley-Davidson
Embora a equipe de corridas já existisse desde 1910, ganhando reputação por dominar as competições de motociclismo nos Estados Unidos, e ajudando no posicionamento da marca, foi somente em 1914 que “The Wrecking Crew “, a “equipe de demolição”, o grupo de competição oficial da fábrica, foi oficialmente formada. E foi nesse ano também que começou um dos eventos chave para a história da Harley-Davidon: A Primeira Guerra Mundial!
A Harley-Davidson na Primeira Guerra Mundial
A Primeira Guerra Mundial começou em 1914 e foi o conflito mais violento e destrutivo que o mundo já havia presenciado. Mas, nela, foi possível mostrar que motocicletas podiam ser muito mais do que simples veículos de lazer, servindo como máquinas de transporte e comunicação no campo de batalha, especialmente em uma época em que os exércitos ainda dependiam fortemente de cavalos e veículos a vapor.
Para se ter uma ideia, no Front Ocidental, em que ingleses e franceses lutavam de um lado e alemães do outro, em um impasse na chamada guerra de trincheiras, que durou praticamente os quatro anos do conflito, ferrovias eram construídas especialmente para permitir que os exércitos se deslocassem de um lado para outro de suas linhas fortificadas.
Nessa guerra marcada pelo impasse, em que nenhum lado tinha ganhos territoriais expressivos, as motocicletas surgiram como uma solução rápida, leve e eficiente para levar mensagens e comunicações entre bases militares, realizar reconhecimento e patrulhamento de áreas, transportar suprimentos leves e peças, além de atuar na escolta e ligação entre tropas e comandantes.
Quando os Estados Unidos entraram oficialmente na guerra, em 1917, a AEF (American Expeditionary Force), o Exército Americano enviado para o front ocidental, requisitou motocicletas, e a Harley forneceu mais de 20 mil motos para uso militar — a maioria do modelo Harley-Davidson J, com motor V-Twin de 1.000 cc. Robustas, confiáveis e capazes de rodar em terrenos difíceis, como as estradas lamacentas e destruídas da Europa, as motos da Harley-Davidson deram sua contribuição para o sucesso dos americanos nos campos de batalha.
Como eram as motos Harley-Davidson que o Exército Americano usou na Primeira Guerra Mundial
As Harleys utilizadas pelos soldados americanos na Primeira Guerra Mundial eram modelos especialmente desenhados para aquela função. Além dos potentes motores V-Twin de 1.000 cc, elas tinham suportes para rifles e mochilas, laterais reforçadas, pneus mais grossos adaptados ao terreno e até sidecars, onde viajava um mensageiro ou operador de metralhadora.
A importância da Primeira Guerra para a história da Harley-Davidson
Não há dúvida de que a encomenda de mais de 20 mil unidades pelo Exército Americano foi um excelente negócio para a Harley-Davidson, mas, mais importante que isso, foi o posicionamento da marca como sinônimo de durabilidade e força e de começar a internacionalização da empresa, com as imagens dos soldados americanos pilotando Harleys pela Europa projetando a marca internacionalmente.
Mas, mais importante do que isso, foi o efeito que isso teve para os consumidores americanos: a associação entre a marca e o orgulho patriótico. Esse é um ponto da história da Harley-Davidson que nenhum concorrente consegue igualar. Para se ter uma ideia, quando o Armistício de 1918 foi assinado, dando fim ao conflito, o primeiro soldado americano a entrar em território alemão pilotava uma Harley-Davidson. A força dessa imagem não poderia ser igualada ou superada
Décadas de 1920 e 1930 – A maior fabricante de motocicletas do mundo
A utilização na Primeira Guerra Mundial ajudou a popularizar a imagem da Harley-Davidson como um produto forte e confiável entre o público civil, e, já na década de 1920, a empresa se tornou o maior fabricante de motocicletas do mundo, com presença em mais de 60 países. Nessa época, introduziu algumas inovações tecnológicas, como o motor de 1.200 cc, em 1922, e o freio dianteiro, em 1928.
Na mesma época, a Harley começou a expandir sua rede de concessionárias, porque, tão importante quanto uma boa estratégia de marketing — que desperte nas pessoas o desejo de adquirir um produto — é ter uma estratégia comercial e sistemas de logística e distribuição igualmente eficientes, para que o consumidor possa realizar o seu desejo e a empresa gere receita e lucro.
O relacionamento com o consumidor através dos clubes de motociclistas
O surgimento da cultura dos clubes de motociclistas nos Estados Unidos, que depois se expandiu para outros países, está diretamente ligado à história da Harley-Davidson. Muitos veteranos da Primeira Guerra Mundial, que usaram as motocicletas no campo de batalha, de volta à vida civil, buscavam o mesmo senso de liberdade, camaradagem e aventura que tinham durante o serviço militar, formando grupos informais de motociclistas para viagens de fim de semana em estradas rurais e competições amadoras.
Esses grupos eram basicamente tinham de caráter social e esportivo, como o AMA (American Motorcyclist Association), que passou a organizar corridas e encontros oficiais. Com as mudanças sociais e a consequente mudança da posição feminina na sociedade americana, o Motor Maids, um dos primeiros clubes femininos, seria fundado em 1940.
Como a Harley-Davidson enfrentou a Grande Depressão de 1929
A quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, causou a maior crise econômica da história, afetando países e setores inteiros, como ocorreu com o Brasil e o café. E com o mercado de motocicletas, e a Harley-Davidson não foi diferente. Muitas fabricantes menores faliram, e para sobreviver a Harley apelou para a diversificação de modelos, que atendessem a outras necessidades dos consumidores, como custos mais baixos. Assim, surgiram motos pequenas e econômicas, como a Harley-Davidson “Model D” (750 cc), além da busca por contratos governamentais e exportações para sobreviver.
Mesmo buscando outro nicho de mercado com um produto mais econômico em função de uma necessidade circunstancial, o posicionamento da marca não era ter a moto mais econômica. E mesmo durante a Grande Depressão, continuou inovando, lançando em 1932 Lançamento do modelo “R”, com motor V-Twin atualizado e em 1936 o lendário motor “Knucklehead” (EL 61), um marco na história da Harley-Davidson. Esse motor de válvulas no cabeçote (OHV) trouxe mais potência, confiabilidade e um design icônico, que junto com os tanques estilizados com o logotipo “speedbird”, influenciados pelo Art Deco, definiram a estética da marca nos anos 30.
A Harley-Davidson na Segunda Guerra Mundial
Com os rumores de guerra vindo da Europa e da Ásia no fim da década de 1930 — na qual os Estados Unidos atuaram inicialmente ajudando o Reino Unido e, depois, diretamente, após o ataque a Pearl Harbor — a Harley-Davidson novamente seria vista nos campos de batalha. Mas, antes disso, ela teria que enfrentar outra disputa, contra sua maior concorrente no mercado interno e nas compras governamentais e militares americanas: a Indian Motorcycle.
Harley-Davidson vs. Indian
Até os anos 1920, a Indian Motorcycle era a marca de motos mais vendida dos EUA, e, antes da Segunda Guerra Mundial, Harley-Davidson vs. Indian era uma rivalidade no nível Coca-Cola vs. Pepsi. A Indian, inclusive, era a mais antiga — fundada em 1901 — e também havia equipado o Exército Americano na Primeira Guerra Mundial. Ainda lidando com os efeitos da Grande Depressão, ambas necessitavam desesperadamente do contrato para fornecer motos para o Exército, que já havia sido um grande negócio para as duas duas décadas antes.
A Indian ofereceu o modelo 741, uma versão militar de 500 cc baseada na Scout civil, que era confiável, mas fraca para as necessidades dos mensageiros do Exército, incapaz de superar as estradas esburacadas que eles esperavam encontrar na Europa. Vendo que a proposta não agradava, a empresa ofereceu a Indian 841, uma tentativa ousada de copiar o design das BMW R71 alemãs, com motor em “V” longitudinal e eixo cardã. Apesar de inovadora, a 841 não agradou ao Exército, que achou o projeto muito diferente das motos já usadas e caro de produzir em massa. E o projeto vencedor foi a Harley-Davidson WLA.
A Harley-Davidson WLA, baseada em sua linha civil de 750 cc, com motor V-Twin transversal, era simples, robusta, fácil de consertar e baseada em um produto que já existia. Além disso, as peças de reposição estavam disponíveis, e os mecânicos já sabiam consertá-las. O Exército Americano encomendou mais de 90 mil unidades. Essas Harleys foram utilizadas pelos próprios americanos e, através do programa Lend-Lease, por exércitos aliados, como os canadenses e os soviéticos. Os futuros adversários ideológicos dos americanos, inclusive, chegaram a receber 30 mil Harley-Davidson WLA.
A Harley-Davidson WLA
WLA significa W –(série do motor Flathead – cabeçote plano, de 750 cc), L – versão com maior taxa de compressão e potência e A (Army-modelo destinado ao exército). Ela tinha filtros de ar e óleo reforçados (para operar em poeira e lama, suportes para rifle no garfo dianteiro, bagageiros e alforjes de lona para transporte de equipamentos, faróis cobertos, que dificultavam a detecção noturna pelo inimigo e pintura verde-oliva fosca, sem partes cromadas para melhorar a camuflagem. É essa, inclusive, a moto que o Capitão América aparece pilotando nos filmes da Marvel, um assunto que abordaremos nesse artigo.
Na frente de batalha, as WLAs eram usadas por mensageiros para comunicações rápidas entre unidades militares, patrulhas e escoltas de comboios, reconhecimento de terreno e observação, além do transporte de oficiais e suprimentos leves. Também podiam contar com um sidecar, que permitia carregar um segundo soldado ou uma metralhadora leve.
Para se ter uma ideia da identificação que os soldados tinham com a WLA e da importância dessa moto para a história da Harley-Davidson, ela foi apelidada pelos soldados de “The Liberator”, “a libertadora”, porque sempre havia uma delas nos locais que os exércitos aliados libertavam do domínio dos nazistas.
Em 1943, a Harley-Davidson recebeu o prêmio Army-Navy “E” Award, concedido a empresas que contribuíam de forma exemplar para o esforço de guerra dos Estados Unidos, sendo uma das poucas fabricantes de motocicletas a receber essa honra — símbolo do orgulho e do comprometimento patriótico da marca.
A Harley-Davidson foi à guerra — e voltou vitoriosa
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, os soldados voltaram para casa e, junto com eles, milhares de motos WLA, muitas delas vendidas barato como sobras militares. Essas máquinas robustas, potentes e que já tinham uma história que nenhum concorrente poderia igualar foram adquiridas por muitos veteranos acostumados à liberdade das estradas, que fundaram os clubes de motociclistas que deram origem à cultura Harley, e que teriam uma incrível influência sobre o comportamento dos consumidores americanos.
Os veteranos de guerra, as gangues de motociclistas e o nascimento da cultura Harley
Até hoje, qual o sentimento que move um consumidor a desejar uma Harley-Davidson? Ela não é mais a moto mais rápida, ou a mais fácil de pilotar. Muito menos a de manutenção rápida e de baixo custo. Mas tem uma “mística” que nenhum de seus concorrentes consegue igualar, muito menos superar. E é isso que os consumidores da marca desejam quando compram motos, roupas e capacetes da marca Harley-Davidson, que inclusive têm toda uma identidade visual em que é possível encontrar alguma inspiração em símbolos militares.
Mas de onde nasceu toda essa simbologia, e por que a história da Harley-Davidson levou a esse tipo de associação? E por que ela parece fazer sentido, soar mais verdadeira para qualquer outra a marca?
A respostas está nos milhares de veteranos de guerra americanos que voltaram da Europa, alguns deles traumatizados e com dificuldades em se readaptarem à vida civil. Uma guerra é uma situação extrema, em que as pessoas presenciam ou participam de eventos que em qualquer outro contexto seriam moralmente inaceitáveis. Mas quando a guerra acaba, elas têm de lidar com isso de alguma maneira.
Muitos desses veteranos encontraram nas motos uma forma de liberdade, identidade, espírito de camaradagem e fuga das normas da sociedade americana do pós-guerra, o que levou à criação de clubes de ex-soldados motociclistas, que compartilhavam o mesmo espírito de fraternidade e rebeldia. Entre eles estavam os Boozefighters MC fundado em 1946 e os Pissed Off Bastards of Bloomington (POBOB), fundado em 1945, e que daria origem aos famosos Hell`s Angels.
Os nomes, que em uma tradução livre seria “brigões bêbados” e “ bastardos irritados de Bloomington” mostrava bem qual era o espírito desses clubes de motociclistas: veteranos de guerra durões, formados nos campos de batalha e que jamais fugiriam de uma briga.
Esses veteranos desajustados, buscando um novo sentido de comunidade podiam ser assustadores para algumas pessoas, mas não tinham a imagem de marginais ou criminosos. Na verdade, mereciam respeito pelo serviço que prestaram na guerra. Tudo mudou, entretanto, em 1947, depois de um encontro de clubes de motociclistas na cidade de Hollister, na Califórnia.
O Evento de Hollister – Como o 4 de julho de 1947 associou a imagem dos motociclistas à marginalidade.
O evento de Hollister, também conhecido como o “motim de Hollister”, foi um encontro de motociclistas que aconteceu na pequena cidade de Hollister, na Califórnia, durante o feriado de 4 de julho, Dia da Independência dos Estados Unidos em 1947.
Era comum que os clubes de motociclistas organizassem esses encontros para confraternizar e participar de corridas patrocinadas pela American Motorcyclist Association (AMA). Mas Hollister era uma cidade pequena, de apenas 4 mil habitantes. Mas compareceram em torno de 5 mil motociclistas, um número muito acima do que a estrutura da cidade comportava, ou estava acostumada a lidar. E entre eles estavam os Boozefighters MC, Pissed Off Bastards of Bloomington (POBOB) e outros clubes formados por veteranos de guerra.
Em Hollister houve corridas de motos, bebedeiras e festas nas ruas e bares, e alguns motociclistas ficaram bêbados e causaram pequenos distúrbios, como dirigir dentro de bares, brigas e barulho excessivo. As autoridades locais estavam despreparadas para o um evento com tanta gente, e tiveram dificuldade em conter a multidão. Mas não houve destruição em larga escala, muito menos vítimas fatais. Após três dias de festa, os clubes de motociclistas foram embora, e a cidade voltou ao normal.
Outlaw Bikers – A criação do mito do motociclista fora da lei
O evento de Hollister teria terminado como terminam todos os eventos em que se reúnem multidões, como grandes shows e eventos esportivos nos grandes estádios em todos os lugares do mundo, inclusive no Brasil. Bastaria limpar a sujeira, consertar alguns estragos causados por uma minoria que se excedeu e vida que segue. Mas não foi o que aconteceu.
A Revista Life publicou uma matéria com uma foto em que um homem não identificado aparece montado em uma motocicleta, cercado por garrafas de cerveja espalhadas pelo chão, com um olhar desafiador.
Hoje se sabe que a foto foi montada para causar o maior impacto possível, numa estratégia sensacionalista para chamar a atenção do público, retratando algo muito mais grave do que havia acontecido na realidade. Mas naquele momento, parecia um retrato real dos acontecimentos. E os jornais passaram a noticiar o evento de forma exagerada e sensacionalista, como um “motim de motociclistas bêbados”, falando em caos, vandalismo e terror.
Foi o suficiente para criar a imagem de marginais para as pessoas e grupos que apreciavam aquele estilo de vida, a ponto de a American Motorcyclist Association (AMA), ser obrigada a se posicionar para gerenciar a crise, afirmando que “99% dos motociclistas são cidadãos respeitáveis, e apenas 1% são fora-da-lei”.
The 1% – Rebeldes e foras da lei . E daí?
O que talvez ninguém esperasse é que algumas motociclistas e clubes não quisessem se distanciar dessa imagem de marginalidade, e adotassem o símbolo “1%” como uma forma de reforçar sua postura rebelde.
Assim, a cultura biker originou a subcultura outlaw biker, o motoqueiro- fora-da-lei, que alguns clubes, ou gangues de motoqueiros, como começaram a ser também chamados, como Hells Angels, Outlaws e Bandidos assumiram para si. E uma minoria deles foi além do espírito de rebeldia e irmandade, e participando de atividades ilegais, infelizmente.
E isso seria um desastre de relações públicas para qualquer marca, mas não foi o que aconteceu!
Gostemos ou não de se admitir esse fato, uma imagem de rebelde, que não segue regras e desafia normas e instituições e cria uma sensação de “perigo” exerce uma forte atração nas pessoas. Faz parte, inclusive, da estratégia de vários artistas, dos Rolling Stones a Madonna, passando por Ozzy Osbourne.
No Brasil, temos o exemplo dos Pit-boys nos anos 90. Episódios de violência envolvendo praticantes de artes marciais comprometiam a imagem das academias, especialmente de Jiu-Jitsu, mas não impediram que o modalidade crescesse, ganhasse o mundo e se tornasse um esporte muito respeitado.
Todos esses acontecimentos foram muito importantes para a história da Harley-Davidson, mesmo que ela não tivesse muito controle sobre eles, porque consolidaram a imagem que o produto, e a marca, teriam no imaginário do público nas décadas seguintes, persistindo até hoje.
E foi essa imagem que ajudou a Harley-Davidson a sobreviver ao grande desafio que ela enfrentaria na década de setenta: A concorrência de fabricantes estrangeiras.
A venda da Harley-Davidson
Se a Harley-Davidson construiu a sua marca nos campos de batalhas da primeira e da segunda guerra mundiais, não deixa de ser uma espécie de ironia que os fabricantes de motocicletas das potências derrotadas em 1945, Itália, Alemanha e principalmente Japão, se tornassem algumas décadas depois concorrentes com os quais a Harley realmente precisava se preocupar, mas foi isso que aconteceu.
No final da década de sessenta a Harley estava em sérias dificuldades financeiras, e acabou sendo comprada pela AMF – American Machine and Foundry em 1969.
Mas estar sob nova direção, ou pilotagem, não significou um estrada aberta e sem obstáculos para a Harley-Davidson. Se na economia os anos setenta foram uma época de crise econômica devido ao primeiro choque do petróleo, a concorrência também se tornava mais acirrada. Não somente nos mercados externos, mas no próprio mercado americano, mesmo com toda a identificação que a Harley tinha com o público, e vice-versa.
fabricantes Japoneses como Honda, Yamaha, Kawasaki e Suzuki inundaram o mercado americano com uma ampla gama de produtos, desde modelos de pequena cilindrada, mais baratos e econômicos, ideais para uma época de incerteza econômica, até superbikes, motos maiores e mais potentes.
Mas os japoneses não eram os únicos a ameaçar a Harley. Fabricantes Europeus, que também tinham que lidar com a concorrência acirrada dos japoneses também buscavam tomar mercado da Harley-Davidson. Era o caso dos britânicos Triumph, da alemã BMW e de italianos como Ducati e MV Agusta, que eram mais focadas em motos esportivas.
O ponto fraco da Harley-Davidson
O ponto fraco da Harley-Davidson era que ela havia sido tecnologicamente superada, sendo menos confiável, tendo pior qualidade de construção e sendo muito mais cara. Em termos de preço, ela não tinha como competir com as japonesas, e em performance, também não era páreo para italianas e alemãs, além das próprias japonesas.
Para piorar, A AMF tentou enfrentar seus concorrentes onde eles eram mais fortes, tentando diminuir custos de uma maneira que prejudicou a qualidade, de o que levou a uma crise de imagem muito séria, que até hoje afeta de alguma maneira a imagem da marca, e foi um dos maiores erros da história da Harley-Davidson.
A volta às raízes com Willie G. Davidson
Depois de uma década em que tudo deu errado, a Harley-Davidson achou uma nova estrada voltando às raízes, quando 13 executivos, incluindo Willie G. Davidson, o neto de um dos fundadores, compraram a empresa de volta da AMF, em 26 de fevereiro de 1981.
E pode se dizer que o sangue falou mais alto. Tendo crescido em meio à Harley-Davidsons, Willie G. compreendia exatamente o que o seu consumidor queria e gostava.
Ele sabia quais eram os motivos, racionais e emocionais, que faziam com que um consumidor escolhesse uma moto mais barata, um campo em que as japonesas eram imbatíveis, ou uma moto de alta performance, em que as próprias japonesas, além das italianas e alemãs eram muito difíceis de serem superadas. A imagem!
Willie G., que se aposentou da empresa em 2012, depois de 49 anos, é uma lenda entre os designers de motocicletas. Ele entendeu que assim como o famoso ronco do motor, o design da Harley-Davidson era algo único.
E não era somente por ele ser bonito. É porque ele remete à história da marca. Como Walt Disney afirmava, com razão, uma boa história é capaz de vender qualquer produto. E a história da Harley-Davidson, que é talvez o capítulo mais importante da história da cultura biker, tem um lugar no imaginário das pessoas, como demonstra toda a produção da indústria cultural em que a marca é citada.
E o que é mais importante: Algumas dessas citações à marca foram, sim, brilhantes ações de merchandising, que faziam parte de uma estratégia de comunicação muito bem elaborada. Mas muitas delas aconteceram de forma orgânica, em filmes, séries e na indústria musical.
Iron Horse – a Imagem da Harley-Davidson na cultura pop.
Iron Horse se traduz literalmente como “cavalo de ferro”. Mas, para os motociclistas, que eram influenciados pela cultura americana em que a imagem do cowboy remetia a liberdade, bravura e coragem, motos grandes e pesadas, como a Harley-Davidson, seriam os cavalos modernos e eles seriam os novos cowboys.
Essa imagem era extremamente sedutora, o conceito de poder viver de acordo com as próprias regras é extremamente atraente para muita gente, e foi justamente isso que tornou a imagem e a marca da Harley, e das pessoas que pilotam uma, tão atraentes para o público, inspirando obras de ficção como filmes, séries de TV, canções de vários gêneros musicais, especialmente do rock, que ajudavam a divulgar ainda mais essa imagem no imaginário das pessoas.
Veja a lista de alguns dos mais influentes filmes, séries de TV, músicas e capas de disco que divulgam a Harley-Davidson e a cultura biker.
Filmes
The Wild One (1953) – O Selvagem
O marco zero da presença da Harley na indústria cultura. Inspirado no Evento de Hollister, O Selvagem mostra Johnny Strabler (Marlon Brando), como o líder de uma gangue de motociclistas chamada Black Rebels Motorcycle Club (BRMC), que invade uma pequena cidade do interior após uma corrida de motos, entrando e conflito com os moradores e com a polícia.
Um dos papéis icônicos de Brando, ajudou a popularizar a imagem do motociclista fora da lei como algo sexy.
Easy Rider (1969) – Sem Destino
Provavelmente o filme mais icônico envolvendo motos Harley. A “Captain America” pilotada por Peter Fonda ao lado de Dennis Hopper , em outra chopper criou um dos símbolos máximos da contracultura dos anos 60. Poderíamos escrever um artigo inteiro sobre como Easy Rider promove o estilo de vida dos hippies e as motos da Harley.
Electra Glide in Blue (1973)
Embora não seja exatamente uma Harley (trata-se da motocicleta policial Electra Glide), é um dos filmes mais associados à estética Harley-Davidson e ao universo policial sobre duas rodas.
Rumble Fish (1983) – O selvagem da Motocicleta.
Rusty James (Matt Dillon) é um adolescente impulsivo, inquieto e sem rumo que sonha em se tornar um grande líder de gangue, assim como seu irmão mais velho, o enigmático e quase mítico Motoqueiro (Motorcycle Boy, vivido por Mickey Rourke)
Harley Davidson and the Marlboro Man (1991)
Mickey Rourke, novamente, interpreta um personagem chamado Harley Davidson, que pilota uma Harley FXR altamente modificada.
Terminator 2: Judgment Day – O Exterminador do Futuro 2 – o Julgamento final(1991)
Se Marlon Brando foi o grande ícone masculino do cinema dos anos 1950, nas décadas de 1980 e 90, esse posto cabia ao fisiculturista e ator austríaco Arnold Schwarzenegger, que tinha uma presença muito imponente em tela, e dirigindo uma Harley-Davidson Fat Boy em incríveis cenas de perseguição, ajudou a tornar esse um dos modelos mais vendidos da marca.
Pulp Fiction (1994)
A Harley-Davidson chopper “Grace” aparece na fuga de Butch e Fabienne. A frase “Zed is dead, baby”, dita por Bruce Willis, entrou na história do cinema.
Ghost Rider – Motoqueiro Fantasma (2007)
Saído das páginas dos quadrinhos, Johny Blaze, o personagem sobrenatural da Marvel, se transforma em uma caveira flamejante e sua moto também ganha rodas de fogo.
Séries
Sons of Anarchy (2008–2014)
A série mais conhecida quando o assunto é motocicletas e motociclistas com um estilo de vida “outlaw”. O clube SAMCRO usa principalmente Harley-Davidson Dyna, Softail e Road King, que são parte fundamental da estética e da narrativa.
Mayans M.C. (2018–2023)
Spin-off de Sons of Anarchy. Os Mayans pilotam diversas Harleys modificadas — big twins, baggers e softails — sempre com muito destaque nas cenas de estrada e no estilo dos personagens.
Harley and the Davidsons (2016)
Drama histórico focado na criação da marca Harley-Davidson e nos desafios iniciais da empresa.
Long Way Up (2020)
Ewan McGregor e Charley Boorman fazem uma longa viagem pela América Latina usando Harley-Davidson LiveWire, modelo elétrico da marca.
Ride with Norman Reedus (2016– )
Série documental onde o ator de The Walking Dead viaja pelo mundo de moto.
Harleys aparecem com frequência, tanto pilotadas por Reedus quanto por convidados.
CHiPs (1977–1983)
Embora a patrulha use principalmente Kawasaki, diversas Harleys Electra Glide aparecem ao longo da série, especialmente nas temporadas iniciais.
American Chopper (2003–2012, 2018)
Reality show sobre a American Chopper (OCC).
Apesar de construírem motos custom, muitas são baseadas em motores e quadros Harley-Davidson, além de homenagens à marca.
The Walking Dead (2010–2022)
O personagem Daryl Dixon usa várias motos ao longo da série — incluindo modelos baseados em Harley customizadas para o estilo pós-apocalíptico.
Músicas
Born to Be Wild – Steppenwolf (1968)
Trilha sonora de Easy Rider, se tornou o hino máximo dos motociclistas. A frase “Get your motor runnin’, head out on the highway” virou sinônimo de pegar a estrada.
Highway to Hell – AC/DC (1979)
Apesar de não falar explicitamente de motos, virou trilha clássica entre motociclistas pelo tema “vida na estrada”.
Midnight Rider – The Allman Brothers Band (1970)
Um clássico sobre liberdade, fuga e estrada — perfeito para viagens de moto.
Motorcycle Man – Saxon (1980)
Metal puro sobre velocidade, estrada e paixão por motos.
Harley-Davidson – Brigitte Bardot (1968)
Uma ode direta à marca e ao estilo de vida rebelde associado a ela.
The Motorcyle Song – Arlo Guthrie (1967)
Folk divertido celebrando a simplicidade de andar de moto.
Bat Out of Hell – Meat Loaf (1977)
Uma das músicas mais cinematográficas sobre velocidade e rebeldia.
Born to Run – Bruce Springsteen (1975)
A vibe de fuga e estrada se encaixa perfeitamente com o espírito biker.
Free Bird – Lynyrd Skynyrd (1973)
Hino de liberdade, sempre presente em encontros de motociclistas.
Wheels of Steel – Saxon (1980)
Outra música diretamente ligada a motos e liberdade.
Ride Forever – Paul Gross (1998)
Motorcycle Mama -Neil Young (1978)
Hell Bent for Leather , Heading out to the Highway – Judas Priest
A Harley Davidson é tão ligada ao Judas Priest que Rob Halford se veste como um motoqueiro e entra no palco com uma Harley feita especialmente para a banda.
Iron Horse / Born to Lose –Motorhead (1977)
Motorcycle Ride – Rancid-(1995)
Motorcycle – Krokus- (1980)
Hard rock direto, com temática óbvia pelo título.
Panama – Van Halen – 1984
The Writings on The Wall – Iron Maiden
A canção do albun Senjutsu, que em japonês significa tática e estratégia, não cita motocicletas em nenhum momento, mas as quatro versões do mascote Eddie que personificam os quatro cavaleiros do apocalipse não montam cavalos, mas motos muito parecidas com a Harley-Davidson. Uma inspiração que veio do seriado Sons of Anarchy, que o vocalista Bruce Dickinson maratonou durante a pandemia.
Além do design – Porque a história da Harley-Davidson tornou a marca única e incomparável
A Harley-Davidson é uma marca que, da mesma maneira que a Apple, por exemplo, tem mais do que consumidores, tem fãs, que buscam a sensação que pilotar uma delas traz.
Mas qual é essa sensação? O ronco é inconfundível, mas o vento no rosto e a sensação de liberdade é algo que, teoricamente poderia ser conseguido pilotando outras motocicletas.
O design é característico, mas foi imitado à exaustão, inclusive pelos competidores que tem a vantagem dos custos mais baixos e da tecnologia mais avançada.
Mesmo assim, a Harley continua tendo os seus leais fãs que dizem: “Você não entende até pilotar uma.”
O que a Harley-Davidson oferece é a sensação de ser parte de uma história que remete à liberdade e desafio às regras estabelecidas. Não de ser um fora da lei, mas de se sentir como um por algumas horas, já que seguir regras faz parte da vida, mas o sentimento de rebelião contra elas também faz.
A história da Harley Davidson tem personagens fictícios livres como Billy e Wyatt em Easy Rider, invencíveis como o T-800 de O Exterminador do Futuro, sedutores como o como o Johnny Strabler de O Selvagem. Tem também personagens reais, como os exageradamente perigosos protagonistas do evento de Hollister, ou verdadeiros guerreiros, que pilotaram as WLAs na Segunda Guerra Mundial.
Quando pilotam uma Harley-Davidson as pessoas buscam se conectar a esse espírito e ser de alguma maneira parte dessa história. E é isso que torna a Harley Davidson uma marca capaz de entregar algo que outras não conseguem, porque nenhuma tem uma história como a dela!

