Iron Maiden e Star Wars: como inovar marcas tão consolidadas que são cultos?

Iron Maiden e Star Wars: como inovar marcas tão consolidadas que são cultos?

Os fãs ardorosos do Iron Maiden e de Star Wars têm uma semelhança entre si. Para eles, é quase uma religião. Sorte dos donos das respectivas marcas, porque os fãs compram tudo o que elas lançam. Mas esses fãs também se sentem donos delas e são muito exigentes. Neste artigo, traçaremos um paralelo entre Iron Maiden e Star Wars e o desafio de inovar marcas tão consolidadas que se tornaram cultos.

 

Iron Maiden e Star Wars: quando marcas viram culto e a inovação se torna um risco

Poucas marcas no mundo atingem um patamar tão alto que deixam de ser apenas produtos culturais e passam a ocupar um espaço quase religioso na vida de seus fãs. Iron Maiden e Star Wars pertencem a esse grupo raríssimo, do qual fazem parte Apple, Harley-Davidson e a própria Disney, que é dona de Star Wars.

Décadas de culto

O primeiro filme de Star Wars, Uma Nova Esperança, foi lançado em 1977, enquanto o primeiro disco do Iron Maiden chegou em 1980. Ambos surgiram em contextos históricos específicos, ajudaram a moldar seus respectivos mercados e, ao longo das décadas, construíram universos simbólicos tão fortes que transcenderam a obra original.

Hoje, mais de quarenta anos depois, essas marcas enfrentam um dilema clássico do marketing: como continuar relevantes sem trair aquilo que as tornou amadas?

Quando o público conhece mais o produto do que o próprio criador

O gestor de marketing que eventualmente assumisse a gestão de qualquer uma dessas marcas teria de tomar um cuidado imenso, porque cada fã se sente tão dono das marcas Iron Maiden e Star Wars quanto Steve Harris e a Disney, respectivamente.

Scream for me

Os fãs de Iron Maiden não apenas gostam da banda. Eles vivem a banda em muitos lugares do mundo, especialmente no Brasil. Ouviram os discos dos anos 80 centenas, talvez milhares de vezes, e sabem cada riff, cada virada de bateria, cada mudança de andamento.

Nos shows, eles cantam letras inteiras que sabem de cor, reconhecem cada referência visual do cenário do palco, reconhecem músicas pelos primeiros acordes e esperam ansiosamente para interagir com o vocalista Bruce Dickinson quando ele corre para a frente do palco, levanta os dois braços e grita “Scream for me!”. E o público sempre responde.

I love you! I know!

“I love you!” “I know!”. “Eu te amo!” “Eu sei!”. Esse diálogo entre a Princesa Leia (Carrie Fisher) e Han Solo (Harrison Ford) é um dos muitos que os fãs da obra de George Lucas conhecem de cor, ilustrando memes e camisetas.

Os fãs da trilogia original assistiram Uma Nova Esperança, O Império Contra-Ataca e O Retorno de Jedi tantas vezes que sabem de cor não só essas, mas praticamente todas as falas dos personagens principais. E também detalhes de cenas, personagens secundários que ganharam fama, como Boba Fett, e até dos que são praticamente figurantes, com poucos segundos na tela.

Quando marcas chegam a esse nível, algo muda profundamente: o público deixa de ser apenas consumidor e se torna guardião do legado.
E isso muda completamente as regras do jogo.

O Iron Maiden chegou ao limite da ruptura

Na década de 1990, o Iron Maiden viveu um de seus momentos mais delicados. O vocalista Bruce Dickinson queria uma carreira solo e mais liberdade criativa e saiu da banda, que foi forçada a mudar.

A identidade visual, com o mascote Eddie, continuou a mesma, mas um pouco mais sombria. Mas algo mudou no direcionamento musical, tanto nas novas canções dos álbuns The X Factor e Virtual XI quanto na interpretação do novo vocalista, Blaze Bayley, para canções imortalizadas nas vozes e performances de palco de Paul Di’Anno e, principalmente, Bruce Dickinson.

O desafio de Blaze Bayley

O Iron Maiden precisava encontrar um novo vocalista. E o maior desafio é que ele não precisava substituir qualquer cantor. A vaga deixada em aberto era de Bruce Dickinson. E, se era muito difícil achar alguém tão bom quanto ele, fazia sentido colocar alguém diferente, que não tentasse ser uma cópia. O escolhido foi Blaze Bayley.

Se a mudança era inevitável, o critério utilizado para a escolha do novo vocalista fazia sentido do ponto de vista da estratégia de marketing. Se um determinado produto é tão bom que parece insubstituível, mas não está mais disponível, faz sentido apresentar um produto diferente. A ideia é passar para o público a mensagem de que não é melhor nem pior, apenas diferente.

Faltou combinar com o público

A melhor comparação que pode ser feita para o tamanho da pressão que Blaze Bayley suportou foi a de Rubens Barrichello quando foi alçado ao centro das atenções do público do automobilismo após a morte de Ayrton Senna.

Blaze Bayley fez o melhor que pôde, assim como Rubens Barrichello. Mas as expectativas do público eram altas demais e, quando não foram atendidas, a resposta veio com rejeição e até agressividade. Se Rubinho teve de lidar com piadas e com o apelido de “Pé-de-Chinelo”, Blaze Bayley lidava com xingamentos e até cusparadas e objetos atirados no palco.

A marca Iron Maiden se tornou um peso

Quando um produto ou uma marca mudam, o melhor cenário que uma empresa pode esperar é conseguir novos clientes sem perder os antigos. Foi o que a Havaianas conseguiu, brilhantemente, com seu reposicionamento de marca no início dos anos 90.

Mas o Iron Maiden não obteve o mesmo sucesso. Uma marca é forte quando, ao serem expostas às referências a ela, as pessoas sabem o que podem esperar. E, no caso do Iron Maiden, esse efeito era muito poderoso.

A força da marca Iron Maiden

Para se ter uma ideia, nos anos oitenta, auge da carreira da banda, a música era vendida em mídias físicas, que custavam caro. Inicialmente discos de vinil e fitas cassete e, depois, CDs. As pessoas muitas vezes ouviam uma música no rádio ou em trilhas sonoras de filmes — no Brasil, as novelas da TV tinham muita influência. Em seguida, iam às lojas adquirir os LPs, que continham várias músicas.

Mas, antes de comprar, costumavam ouvir trechos de algumas faixas, além daquela que já conheciam, para ver se agradavam. Essa “amostra grátis” tinha uma influência muito grande na decisão de compra.

O Iron Maiden não tocava no rádio e muito menos era trilha sonora de filmes, novelas ou qualquer outro tipo de conteúdo para cinema ou TV. Sua máquina de vendas dependia de duas coisas: das incríveis artes de capa do ilustrador Derek Riggs, que sempre contavam histórias, assim como as letras das canções da banda, e da impressionante lealdade de sua base de fãs.

Quando a base de fãs do Iron Maiden ouviu os trabalhos com Blaze Bayley, a rejeição foi quase total, porque não se tratava mais da marca que essas pessoas haviam aprendido a amar. Era outra coisa, à qual o público do Iron Maiden não estava disposto a se acostumar.

As vendas de discos caíram, e os shows, que antes eram em grandes estádios e arenas, começaram a acontecer em lugares menores. E o público que comparecia, porque era fiel à marca, ainda demonstrava grande rejeição a Blaze Bayley.

A volta de Bruce Dickinson

Bruce Dickinson, quando saiu do Iron Maiden, lançou Balls to Picasso, em que a faixa “Tears of the Dragon” estourou. Mas também era algo muito diferente do que ele fazia no Iron Maiden e das expectativas dos fãs. Após o impacto inicial, ele também começou a enfrentar rejeição de seu público, que era essencialmente o mesmo do Iron Maiden.

Sua carreira solo, apesar de trabalhos muito bons — especialmente quando se juntou ao guitarrista Adrian Smith, outro ex-Iron Maiden — e conciliada com sua atuação como empreendedor, piloto de avião, dono de companhia aérea e palestrante, jamais foi algo como a de Ozzy Osbourne, por exemplo, que, ao sair do Black Sabbath, não precisou mais de sua antiga banda.

Nesse cenário, a volta de Bruce Dickinson e Adrian Smith ao Iron Maiden, em 2000, marcou uma correção de rota, com a banda recuperando vitalidade e a marca voltando a ganhar força.

Os discos lançados pelo Iron Maiden desde então não são unanimidade entre os fãs, nem ocupam o mesmo lugar mítico dos trabalhos da década de oitenta. Se a razão disso é a ausência do produtor Martin Birch, o tempo passado para os músicos ou as mudanças do mercado, é algo que os fãs debatem bastante.

Mas há algo fundamental neles: o Iron Maiden entendeu que seu posicionamento como marca da indústria cultural já havia sido construído e buscou, acima de tudo, honrar o próprio legado.
A banda entendeu que talvez não pudesse mais reinventar radicalmente sua essência — mas poderia respeitá-la.

Star Wars e a aposta na desconstrução

Star Wars seguiu um caminho diferente e muito mais arriscado. Após a compra da Lucasfilm pela Disney, a empresa, sob a liderança de Kathleen Kennedy, que havia trabalhado com George Lucas por muitos anos, optou por expandir o universo e, ao mesmo tempo, reformular profundamente seus pilares narrativos, buscando dialogar com novos públicos e novas sensibilidades culturais.

Mais mulheres em Star Wars

Se concordarmos que narrativas de ficção devem, de alguma maneira, refletir a realidade, mesmo que simbolicamente, do ponto de vista mercadológico faz todo o sentido que elencos e personagens sejam mais diversos.

No Brasil, por exemplo, em 1960, apenas 16% das mulheres com mais de 15 anos procuravam emprego, sendo a maioria donas de casa. Em contraste, 78% dos homens buscavam emprego fora. Já a partir da década de 1970, quando Star Wars surgiu, a participação feminina no mercado de trabalho apresentou uma espantosa progressão.

Entre os anos 1990 e 2010, a taxa de participação de mulheres entre 15 e 59 anos no mercado de trabalho aumentou de 52,5%, em 1992, para 61%, em 2012. O perfil mudou: se antes quem trabalhava fora era predominantemente jovem e solteira, em 2010 a maioria tinha mais de 30 anos, era casada e tinha filhos.

Mais participação feminina no mercado de trabalho significa mais renda, mais educação e mais poder de decisão. Portanto, faz todo o sentido, em termos de gestão dos negócios, que as marcas se atualizem e dialoguem com diversos públicos.

Entretenimento — e isso inclui a produção de conteúdo — é um negócio. E não é uma estratégia inteligente deixar de prestar atenção a um público-alvo importante e relevante.

Então, por que alguns dos novos conteúdos produzidos pela marca após a venda para a Disney provocaram não apenas críticas, mas uma rejeição furiosa por parte de alguns fãs?

Chegar a essa resposta pode significar caminhar por um campo minado, mas seria impossível chegar a uma conclusão deste artigo que fizesse sentido sem fazê-lo.

Novos filmes de Star Wars e as críticas ao fandom

Questionada sobre os lançamentos mais recentes de Star Wars sofrerem tantas críticas, Kathleen Kennedy afirmou à imprensa que elas partiam de um fandom masculino tóxico, incapaz de aceitar o protagonismo feminino. As maiores críticas recaíram sobre a personagem Rey, vivida pela atriz Daisy Ridley, e mais recentemente, sobre a showrunner da série The Acolyte, do Disney+, Leslye Headland.

A recepção a protagonistas femininas fortes ao longo do tempo

Seria no mínimo ingenuidade ignorar que muitos desses comentários podem ter, sim, preconceitos de gênero em sua origem, mesmo que seus autores não admitam isso. Mas seria igualmente perigoso ignorar essas críticas como simples gritaria da internet e deixar de ouvir o próprio público que consome o conteúdo e sempre gastou muito dinheiro com a marca Star Wars.

É razoável afirmar que esse público geek, que ama Star Wars, também acompanha há décadas, e com grande interesse, franquias como Alien, Tomb Raider e Mulher-Maravilha, que têm como protagonistas a suboficial Ripley, vivida por Sigourney Weaver; Lara Croft, vivida por Angelina Jolie e Alicia Vikander; e a Princesa Diana de Themyscira, interpretada por Gal Gadot no cinema e Lynda Carter na TV.

Nenhuma dessas personagens foi alvo de críticas ou sofreu “hate” nas redes sociais. Falando especificamente da marca Star Wars. Rogue One: Uma História Star Wars, lançado em 2016, passa-se, na cronologia da série, entre A Vingança dos Sith e Uma Nova Esperança e tem como protagonista Jyn Erso, uma mulher forte, corajosa e inteligente, vivida por Felicity Jones.

Rogue One foi lançado um ano depois de O Despertar da Força, que apresentou Rey como protagonista e Kylo Ren como vilão, deixando claro que a Disney apostaria no protagonismo feminino como estratégia.

O filme foi amplamente aclamado na época e, passados quase dez anos desde seu lançamento, é considerado o melhor filme produzido pela Disney com a marca e um dos melhores de toda a saga Star Wars desde 1977. Tal aclamação, vinda de um público que nutre uma adoração quase religiosa pela franquia, não é pouca coisa.

O erro da trilogia sequel de Star Wars

Se os mesmos fãs que não aceitaram Rey aclamam Jyn Erso, podemos concluir que o machismo não é a explicação para a rejeição de uma parte significativa do fandom de Star Wars à trilogia sequel — ou, ao menos, não é a única explicação.

O problema não foi tentar falar com novos fãs ou promover o protagonismo feminino. Insistir nessa tese, que insere o debate em um contexto de polarização política, pode gerar engajamento nas redes sociais, mas há dúvidas se isso vende ingressos de cinema ou assinaturas do Disney+.

O problema foi desconstruir personagens clássicos que carregavam décadas de significado emocional para milhões de fãs. A abordagem dada a Luke Skywalker é o exemplo mais emblemático. Para muitos fãs antigos, não se tratou de evolução ou amadurecimento, mas de uma ruptura com tudo aquilo que ele representava.

Como renovar uma marca amada depois de décadas?

Onde Star Wars errou, Rocky e Karatê Kid, outras franquias surgidas nas décadas de 1970 e 1980, acertaram em cheio.

Produzir novos filmes ou séries mostrando o que aconteceu com personagens amados pelo público trinta anos depois, com os mesmos atores, é meio caminho andado para o sucesso, pois o apelo nostálgico é muito forte para um fandom que já viu e reviu cada obra dezenas de vezes.

A passagem de bastão para uma nova geração é necessária, já que os atores originais envelheceram, e faz sentido dentro da lógica do universo ficcional.

Sylvester Stallone fez isso com Rocky Balboa (2006) e promoveu a transição geracional nos filmes da série Creed, o que inclusive lhe rendeu uma indicação ao Oscar.

Ralph Macchio e William Zabka reviveram Daniel LaRusso e Johnny Lawrence em Cobra Kai, reunindo heróis e vilões das décadas anteriores em seis temporadas de grande sucesso na Netflix.

Além dos arcos de redenção de antigos vilões, a série promoveu uma passagem de bastão para a nova geração, incluindo protagonistas femininas bem construídas.

Onde Rocky/Creed e Cobra Kai acertaram, a trilogia sequel de Star Wars errou.

E o erro foi não compreender que, se esses personagens fazem parte de um universo visto e revisto há décadas, esse público que gosta tanto deles deseja revê-los, 30 anos depois, evoluídos, amadurecidos, mas não desconstruídos.

Há riscos em mexer com o que as pessoas amam

Iron Maiden e Star Wars ensinam a mesma lição em termos de estratégia de marketing, embora por caminhos diferentes. Marcas fortes podem evoluir de simples propriedades intelectuais para fenômenos culturais e, depois, para objetos de culto.

Quando isso acontece, a marca deixa de pertencer apenas à empresa ou aos criadores e passa a existir no imaginário coletivo de milhões de pessoas.

Inovar é necessário. Estagnar é fatal. Mas desconstruir o que foi amado por décadas é um risco exponencialmente maior.

O Iron Maiden aprendeu isso ao errar e corrigir o curso. Star Wars decidiu dobrar a aposta. Nenhum de seus filmes deu prejuízo, mas as críticas que a trilogia sequel recebe até hoje mostram que a marca pagou um preço em capital simbólico, alienando parte de seu público mais fiel.

Gerenciar marcas fortes exige humildade

A lição estratégica é clara: quanto mais forte, longeva e amada é uma marca, menos liberdade ela tem para romper com sua própria essência.

Quando o público ama profundamente uma marca, ele quer reconhecimento, respeito e continuidade emocional. Quer relacionamento.

Cabe ao gestor compreender que todo relacionamento exige diálogo e reciprocidade. A opinião do público precisa ser levada em conta.

Conclusão: é impossível inovar marcas consolidadas?

Não. Mas é preciso saber como fazê-lo.

Não se trata de agradar a todos o tempo todo — isso é impossível. E é ainda mais difícil quando se lida com fãs como os de Star Wars ou Iron Maiden, que conhecem o conteúdo clássico de cor e salteado.

Essa base de fãs sempre comparará qualquer novidade com o material clássico. Ser comparado com algo que carrega décadas de memória afetiva implica quase a certeza de que irá perder na comparação, no primeiro momento.

Mas apenas no primeiro momento.

Uma das vantagens das marcas amadas é que o público está sempre disposto a dar o benefício da dúvida. Mais do que consumidores ou fãs, eles são torcedores. E o torcedor sempre deseja a vitória do seu time.

Quando a inovação preserva o DNA e a alma da marca, a rejeição inicial tende a ser superada — e a inovação, finalmente, aceita.

Rolar para cima